A agenda antiliberal de Doria
Por Guiga Peixoto*
Logo ao assumir seu mandato à frente do executivo do estado de São Paulo, o governador João Doria anunciou planos para uma agenda agressiva de privatizações, com mais de 220 projetos de desestatização. Já era de se esperar algo assim, uma vez que o partido de Dória, o PSDB, sempre defendeu maior participação privada no fornecimento de serviços essenciais para a população, em contraste com os planos quase sempre estatizantes da esquerda tradicional, encabeçada pelo PT, que ele tanto critica. Tanto o governador quanto o seu vice, Rodrigo Garcia (DEM), diziam que a agenda liberal poderia trazer investimentos para o estado na ordem de R$ 37,6 bilhões, sobretudo com a venda do controle acionário da Sabesp, principal companhia de saneamento estadual, que dependia da aprovação de uma lei específica no Congresso Nacional, permitindo a privatização de estatais de saneamento.
Na prática, porém, o que se viu desde então foi um governo comprometido em manter a ineficiente máquina estadual operando onde não há necessidade. Mais do que isso, Doria passou a se utilizar de vantagens legais das empresas públicas para desrespeitar a livre concorrência e prejudicar as empresas privadas, além da própria população. O plano liberal pouco avançou, ao contrário dos negócios da Sabesp sobre setores que não são de sua expertise.
No dia 30 de junho de 2020, por meio de um contrato de programa, a estatal assumiu os serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos do município de Diadema por 40 anos. A contratação aproveita um dispositivo na lei, que permite aos municípios delegarem serviços de saneamento a outro ente da federação, na forma de uma companhia estatal. Ou seja, num segmento dominado por empresas privadas de reconhecida competência operacional, o governo se aproveita de suas vantagens para furar a fila e oferecer uma incerteza em termos de qualidade.
Tal movimento vai na contramão do recém aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, Marco Legal do Saneamento Básico, convertido na Lei nº 14.026/2020, que determina que para as contratações de serviços da área de saneamento básico, quando não executados diretamente pelo próprio município, haja a celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedando a dispensa de licitação por meio de contrato de programa para os serviços de saneamento.
Tal regramento foi expressamente posto no referido texto legislativo, ante a clara e evidente necessidade dos dias atuais se exigir o respeito aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública, principalmente o da moralidade, da publicidade e o da impessoalidade, bem como, que haja o devido respeito à livre concorrência entre todos os interessados à prestação do serviço, a fim de que haja sempre um processo licitatório que possibilite a competição entre todos os interessados na respectiva prestação, com ganhos de efetividade e na relação custo-benefício para toda a população.
Ocorre, que havia sido incluído no referido projeto o art. 20 afastando a obrigatoriedade de concessão mediante procedimento licitatório quando da contratação dos serviços de limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e de drenagem e manejo de águas pluviais, o que foi objeto de acordo junto ao Governo Federal para fosse feito o seu veto, garantindo a ampla concorrência para a prestação de todos os serviços do saneamento básico. O que veio a se consolidar quando da sanção do projeto.
O que vai justamente na contramão do que está sendo feito pela Sabesp, controlada majoritariamente pelo Governo do Estado de São Paulo, com esse movimento em que há também duas imoralidades flagrantes. A primeira é que, apesar de ser considerada pública, a Sabesp é uma sociedade de economia mista, listada em bolsa, em que quase metade de sua participação acionária está nas mãos de particulares. Neste sentido, a companhia deveria ser tratada como as outras, que também visam lucro. A segunda questão, ainda mais curiosa, é que este tipo de contratação está agora impossibilitada com a entrada em vigor do novo marco do saneamento, tendo sido feito esse procedimento rapidamente antes que a Lei nº 14.026/2020 entrasse em vigor. Assim, todas as empresas, de qualquer natureza, serão obrigadas a participar de licitação, competindo em pé de igualdade e em busca da melhor proposta.
A forma de contratação operada pela Sabesp junto com o município de Diadema, fere os princípios constitucionais de isonomia entre empresas, função social de contrato, obrigação de prestação de serviço adequada e de interesse público. Ao mesmo tempo, salta aos olhos que não houve qualquer consulta pública prévia sobre a minuta do contrato de programa celebrado. Outra questão é a ausência de um Estudo de Viabilidade Técnica e Financeira – EVTE, indispensável para conhecer as características e desafios para prestação de serviço. Como consequência, sem um plano técnico, a chance de a conta sair mais cara do que se imaginava é bem alta. Um agravante é o fato de o município precisar aportar recursos sempre que as despesas da Sabesp forem maiores que a taxa arrecadada diretamente da população. Isso significa que os cidadãos de Diadema podem pagar duas vezes pela mesma prestação.
Assim, resta evidente que o governador deveria ter mais zelo pelos princípios liberais que o levaram até o Palácio dos Bandeirantes. De nada adianta posar para fotos com empresários se o seu compromisso é prejudicá-los, atuando em favor de um modelo que beneficia a perpetuação de serviços caros, ineficientes e vulneráveis a interesses escusos. Neste processo em que o saneamento é tratado como área de influência política, quem sai perdendo é o meio ambiente e a saúde do povo paulista.
*Guiga Peixoto é deputado federal de São Paulo pelo PSL